domingo, 19 de janeiro de 2014

Da vida que muda como se troca de faixa ao escutar um disco. Da vida que muda como um final de uma temporada e o começo de outra em um seriado. (continuo péssima para títulos!)

I'm lost again
And I'm on the run
Looking for love
In a sad song

Torch - Soft Cell


Há um lugar em São Paulo que é uma espécie de "Central Perk" do seriado Friends pra mim... Na verdade é melhor do que o "Central Perk", devido ao tema e à proposta. E eu não tenho duas amigas e três amigos que formam um grupo inseparável que frequentem esse lugar comigo o tempo todo mas eu tenho boas amigas e bons amigos por aí, em círculos diferentes, e pessoas queridas que aparecem e reaparecem na minha vida o tempo todo. Trata-se de um lugar que conheci por acaso, na busca por aquilo que amo e não entendo e que sinto e não explico: música. Isso foi há muito tempo, há quase 10 anos. Em dez anos, novos sons, novas pessoas, novos abraços, novos amores, novas decepções, novas experiências e novos medos pelas coisas novas. Ontem estive lá em busca da música e das pessoas, hoje esse lugar é um novo espaço com uma nova proposta mas com as mesmas pessoas. Foi a primeira vez que fui sozinha até lá depois de cair em um dos buracos desse lugar... o lugar é adorável mas tem buracos e ovos no chão, como há em todos os lugares, por isso qualquer um(a) pode cair se não tomar cuidado onde pisa. Foi a primeira vez que apareci lá sozinha desde que saí do buraco "C", foi estranho, frio e havia pouco ar para respirar no início. "Não deveria ter vindo", pensei nos primeiros minutos. A sorte é que há um balão de oxigênio, imagens que distraem como em um delírio e lenços de papel no banheiro. Respiração no lugar, olhos enxutos e cabeça erguida, saí do banheiro e encontrei J., companhia de longa data nesse lugar e em outras caçadas por música. Sim! Eu deveria ter ido, os ovos no chão pareciam agora massagear os pés, eram ovos de borracha! Logo cumprimentei V., quem levava os bons sons para aquela noite, quem pouco conversou comigo desde que nos conhecemos mas que teve um papel tão especial na minha angústia no lançamento do livro de W., onde eu estava sozinha e incomodada pela presença de C., quando eu ainda tinha um pé dentro do buraco. Era preciso que nos reuníssemos para escutar os sons de V.! Por isso chamei seu vizinho A.,  que foi também meu companheiro de filosofia e ruídos, alguém que sabe encontrar beleza no som de uma britadeira... embora ontem só houvesse sons delicados no lugar, as britadeiras estavam apenas na minha cabeça. Éramos J., A. e eu em uma mesa com outros personagens com nomes e muita simpatia, um pouco longe de C., ator de uma novela mexicana onde atuei, por quem eu tenho alguma simpatia desajeitada que não encontrou direito o seu lugar. V. começou a tocar as suas músicas e a cantá-las sem microfone com uma surpreendente e bela voz, ele nos apresentou também músicas que não eram suas, músicas que gostamos: Oh! You Pretty things! E uma música de quem gostamos, de um amigo que está longe, era uma música de W., o do livro, sim, o do livro bonito, alguém com quem eu tive um passado e quase um outro passado que pode ser algo no futuro, um futuro passado, um passado futuro que coça e que me dá ansiedade porque não posso prever e que terei que ressignificar mas não sei como o farei porque... porque... porque ainda não chegou. Retomo a respiração. Anyway, V. elogiava W. antes de revelar seu nome e eu cutucava J. dizendo "É o W. É o W" e era. Talvez aquele tenha sido o momento mais surreal da noite, eram muitos dos meus passados, muitos futuros se construindo, muitas coisas se ajeitando e acordes tão bonitos que não sei fazer com letras que não sei escrever que traziam uma pausa para tanta ansiedade e tanto medo que me invadem nos últimos dias.  
Uma vez um amigo me disse que iria escrever um seriado sobre a minha vida amorosa. J. escreveu que ontem o seu dia parecia um final de temporada, não tenho a menor ideia de quais seriam os motivos dele para escrever isso, mas para mim parecia um começo de temporada. Contudo, a roteirista sou eu e agora cabe a mim decidir o que vou escrever.

sábado, 4 de janeiro de 2014

O Jogo da Amarelinha, capítulo 7 (Cortázar)

Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que minha mão te desenha. 
Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água. (CORTÁZAR, J., O Jogo da Amarelinha, p.50)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Adeus Ano Novo

Eram cinco para celebrar a chegada de mais um ano, embora não compreendessem bem a celebração em que estavam envolvidos. Entendiam de outros tipos de celebrações... morar juntos, emprego novo, bolsas de estudo, trabalho de conclusão de curso, curas mas... ano novo? Dormir em um ano e acordar em outro? Ou, ficar acordado entre dois anos? De qualquer forma, o que fariam naquela noite? Decidiram reunir-se na casa de um deles com alguns sucos que o primeiro levou, um brigadeiro com cerejas que a segunda fez, salgadinhos comprados pela terceira e umas cervejas e baguetes recheadas que o quarto e a quinta providenciaram. 
Eis a comida e a espontaneidade da ceia feita de improviso, todos rodeavam a mesa e tinham o primeiro assunto da noite, que logo foi deixado de lado para que continuassem os assuntos que ficaram pela metade ao longo do ano, sabe como é, porque é preciso acordar cedo no dia seguinte, ou porque havia muito trabalho por fazer em casa, roupa para lavar, aquele casamento que tomou tanto tempo por causa de roupa, cabelo, presente... quando viram, a tal da virada do ano era uma ótima oportunidade para continuarem as suas conversas sobre a pessoa que alguém encontrou no aplicativo de paquera, as intrigas da família, o novo cargo no trabalho, o resultado dos exames de sangue, aquele show que arrebatara a todos, o namoro que terminou, os novos projetos, os filmes que já não estavam mais em cartaz... quantas conversas iniciadas em doze meses e que eram concluídas em poucas horas! Era como se todos os cafés, as festas de aniversário, as cervejas, os piqueniques, a hora do almoço e os breves encontros durassem o tanto que tinham que durar, sem interrupções! Sem interrupções, pelo menos por algumas horas, até os celulares começarem a fazer cócegas nos ouvidos ao emitirem aqueles sons de pequenos quadradinhos de metal caindo no chão, ruídos que só eram encobertos pelos estouros esparsos dos fogos lá fora, que não pareciam compor sons mas sim um movimento de martelar na cabeça.
- Que horas são? - exclamou a quinta, que não queria fazer uma pergunta pois tinha o celular nas mãos e as horas na sua cara naquele momento. 
- Dez e meia, e nem percebemos. Até que estamos passando bem, sem aderir à felicidade compulsória que todos perseguem lá fora. Ou que persegue a todos? - refletiu a segunda, que era encarada pelo quarto, na porta do quarto que havia em frente ao cômodo onde estavam reunidos. 
- Mas  - começa o quarto, provocando a segunda muito mais com o olhar do que com o que dizia não me diga que você que nos enchia tanto para comemorar a troca da folhinha, não gosta mais nem mesmo do momento das promessas para o ano novo, vai? Não me diga que morreu aquela sua curiosidade em relação ao que cada um de nós pretende fazer ao longo dos próximos doze meses? Hein?
Os quatro arregalavam os olhos e sentiam que a brincadeira tornara-se perigosa... se queriam estar acordados no "Ano Novo", deveriam saber que ouviriam os fogos, a contagem regressiva, veriam os vultos brancos, as sementes de romã e o prato de lentilhas dançando ao som do "Feliz Ano Nooooovo!!!" e então chegara a hora de falar no assunto:
- Não sei. - dizia a segunda, com lágrimas nos olhos - Não sei do que você está falando. Quero dizer, eu sei, eu sabia. Hoje não sei. Não sei quem eu sou em alguns momentos. Sei que tive um ano ótimo mas não sei qual é a minha posição no mundo na virada de um ano para o outro porque não entendo o que isso significa pra mim. Não entendo mesmo.
O quarto, confiante: 
- E precisa entender, querida? Não precisa. É só uma brincadeira. Ei, veja só como é simples. Minha resolução de ano novo é passar mais tempo com a minha família, que são vocês quatro! A família que escolhi, quem entende as minhas ideias frias, os meus comportamentos descontrolados e as minhas roupas furadas! E as minhas declarações mais lindas com o fundo musical feito pelos fogos...
Entre gargalhadas, a quinta respira fundo, se recompõe e com seriedade afirma: 
- Eu vou parar de fumar.
Boquiaberta, acompanhando com o olhar a saída repentina da quinta após a declaração repentina, a segunda, com a voz fraca coloca a sua promessa: 
- Eu só quero passar mais tempo com o meu cachorro que está comigo há dois anos, é só isso que tenho para resolver com urgência. Só.
E o terceiro, com ar envergonhado e as bochechas vermelhas como se estivesse em um daqueles momentos em que todos discutem política ou literatura, joga na mesa a sua resolução: 
- Definitivamente eu preciso ler mais!
Dirigindo-se ao terceiro, o primeiro diz: 
- Amigo, o tanto que você conseguir ler, eu tentarei me exercitar! Vou fazer academia!
Parecia que a brincadeira fora fácil, já estavam todos rindo aliviados, como se tirassem pesos das costas. E até a quinta já voltara para a roda, acalmada por um abraço do terceiro, que não tinha mais as bochechas vermelhas, com quem dividia um copo d'água. Estavam tão positivos que começaram a comparar as promessas para o ano novo com as conquistas do ano anterior. Todos concordavam que aquele fora um bom ano! O quarto tivera uma vida de pesquisador agradabilíssima, com bolsa de estudos e um trabalho elogiadíssimo, indicado para publicação. O primeiro estava muito feliz por morar junto com alguém, em uma "união estável", como ele costumava dizer por aí. A terceira estava saltitante com o novo emprego e todos os projetos e viagens que ela realizaria ali! A quinta não poderia ter tido um ano melhor, tinha encontrado a cura de uma doença que ela nem mencionava mais e o seu rosto irradiava serenidade. Enquanto a segunda comprara um apartamento, pertinho de uma estação de metrô e de um parque onde podia levar o seu cachorro passear! 
- Ora, do que estamos reclamando?
- Não deveríamos estar comemorando então?
- Tá. Mas e agora? Não entendo. Já não comemoramos cada um desses acontecimentos? O que tem a virada do ano com isso?
- Por acaso vocês lembram da última vez em que comemoraram o ano novo? Eu não.
- Não lembro. Mas lembro de algumas comemorações específicas.
Não importa quem colocava essas perguntas sobre o ano novo, isso não os identificava. O que os identificava eram os planos, o detalhe que acrescentavam àquela suposta ceia, as conquistas e as lembranças da época em que celebravam o ano novo. O quarto recordava o ano novo em que passara no motel com uma pessoa cheia de adendos e anexos em sua vida. A quinta quase se mordia de raiva ao lembrar que em uma virada de ano participara dos trotes e brincadeiras humilhantes para se integrar ao grupo. O primeiro sorria por saber que pelo menos ali ele não estava chorando em sua cama, nem enlouquecendo com o barulho dos fogos, como acontecera certa vez. A terceira se sentia leve, longe de outros amigos que ela considerava tão queridos quanto aqueles quatro, se sentia bem por estar longe dos outros pois sabia que esses outros realmente celebravam a data e ela sempre se sentia triste por estragar o ano deles. E a segunda recordava de muitas viradas, até mesmo das que ela comemorara, mas não quis compartilhar todas, somente aquela em que ela deixara a sua realidade com o ano velho e entrara num sonho de ano novo que viria a resultar num pesadelo, do qual ela só acordou quando já estava sozinha e com medo. 
De repente o vizinho gritou "Feliiiiz anooo nooovooooooo! Vaaaaai Corinthiaaaaans!" e o cinco se entreolharam. Não sabiam o que dizer, nem quem eram, nem o que estava acontecendo, ou sabiam que nada estava acontecendo. Tentaram continuar a conversa mas toda conversa morria, olhavam para o relógio. Era como se estivessem atrasados, como se tivessem algo mais importante para resolver e começavam a tentar concluir rapidamente todos os seus assuntos. 
A segunda sentia as lágrimas lutando para sair pelas venezianas dos seus olhos, sentia calor, via o cômodo girar, não conseguia se concentrar no que os
amigos tentavam dizer, parecia que a pele do seu corpo ia estourar e agora já sentia frio. Não aguentou, teve que dizer, na verdade precisava gritar. Subiu no sofá e gritou: 
- O meu cachorro!!!!! O meu cachorro! O meu cachorro! Eu não sei o nome dele!