sexta-feira, 28 de março de 2014

A minha melhor amiga dos anos 90

Eu já tive uma melhor amiga, mais de uma vez. Hoje não tenho melhor amiga, nem melhor amigo, tenho uma família composta por alguns amigos e algumas amigas. A minha primeira irmã foi a minha melhor amiga da década de 1990, conquistada por minha mãe, não por mim... "A sua filha pode brincar com a minha?" ... "A sua neta pode brincar com a minha filha?" ... "Quer conhecer a minha filha?" As minhas primeiras amizades foram conquistadas assim e não sei se alguma delas durou até hoje (apenas uma, eu acho), para mim não é possível ter os seus amigos escolhidos por outras pessoas, assim como não é possível ter uma família que você não escolheu. Mas acontece que essa amiga tornou-se a minha melhor amiga, talvez a minha mãe, por acaso, naquele dia fez a escolha certa. 
A minha melhor amiga era três anos mais nova do que eu, era confundida com a minha irmã mais nova que nunca existiu, e eu era confundida com a irmã mais velha dela que também nunca existiu. Eu me sentia muito feliz quando pensavam que éramos irmãs e chegava a ficar triste por não termos nascido irmãs, a considerava irmã mas não valorizava o nosso laço, como se essa vontade de que fôssemos irmãs me acomodasse em uma situação em que sendo sua irmã e sua melhor amiga, teria alguma garantia de que nada nos separaria e de que tudo o que eu fizesse ela perdoaria. Naquela época para mim bastava deixar um recado em uma carta ou em uma página de sua agenda com os dizeres "Você é +QD+. Te adoro!", ou qualquer coisa com "para sempre", que o nosso destino estaria selado, como hoje muitos casais e parentes fazem com o tal do "eu te amo". A gente simplesmente se entendia no geral, obedecia algumas regras parecidas em nossas casas e gostava das mesmas brincadeiras. Essa amizade durou um bocado e era muito importante para mim, acredito que, naquela época, para ela também, durou até a nossa adolescência, primeiro a minha e depois a dela, mas durou com muitos hiatos com os quais eu nunca soube lidar. Eu desconhecia a possibilidade de discordar dela, de dizer "não" ou de bater boca com ela, no meu mundo ideal essas coisas não aconteciam entre melhores amigas, mas ainda assim eu me incomodava com algumas coisas dela, eu sentia ciúmes dela, às vezes queria ficar sozinha, queria dizer pra ela que eu não gostava de algumas coisas que hoje nem lembro quais eram... mas ao invés disso eu escrevia uma carta arrogante ou me comportava de maneira estranha com ela... achava que era por meio de um desses códigos que eu sinalizaria pra ela que algo estava errado entre a gente, e daí surgiam os hiatos. A relação era retomada pelo meu arrependimento seguido de uma mediação, que poderia ser feita pela minha mãe de novo ou por uma vizinha querida que gosta da gente até hoje, que me aproximava dela para eu pedir desculpas e bruscamente virar a página. De todos os motivos para um hiato só me lembro do último mas arrisco dizer que todos eles foram causados por mim. 
Nós crescemos e esse vício maldito de não discutir a relação só cresceu com a gente. Há nove anos, no meu último ano da adolescência ou em um dos meus primeiros anos da "juventude", eu deixei de me identificar com o estilo de vida dela, ou com as opiniões dela, eu deixei de me identificar com algo dela que até hoje não sei nomear. Eu não gostava da maioria dos amigos dela e achava que ela se divertia muito mais com eles do que comigo, eu não queria ir mais para os lugares que ela ia e estava entrando em um mundo diferente. Muita gente sempre me disse que em vários momentos a nossa diferença de idade pesaria em nossa relação, nos maus momentos eu concordava com esse ponto de vista, mas nos nossos bons momentos eu odiava esse tipo de comentário sobre a nossa amizade. Ora, por que eu não poderia continuar a tê-la como irmã mesmo não saindo mais com ela e não tendo as mesmas amizades? Por que eu nunca soube como dizer isso a ela? Para mim parecia mais fácil fingir que estava ocupada com o meu detestável emprego de operadora de telemarketing para pagar a faculdade e com o mundo maravilhoso do meu primeiro ano da graduação e ir me afastando aos poucos, foi assim que eu comecei a machucá-la pela última vez. Me lembro disso nos últimos anos e acredito que até agora consegui dizer a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos da minha "família" tudo o que precisei dizer para manter e salvar as nossas relações quando passamos por algum momento complicado. Há nove anos eu consigo me importar, me colocar no lugar do outro, perguntar se há algo errado, pedir desculpas, discutir a relação e discordar. Nada disso me faz a melhor amiga do mundo, mas só mais uma pessoa como muitas outras que se comportam com o mínimo necessário para fazer e manter amizades, porém fazer essa lista é perceber que finalmente eu descobri qual era o nosso, o meu, problema. 
A morte do avô dela - uma pessoa pela qual eu não tinha nenhum afeto - marcou a destruição do que nos restava, eu não fiz nenhum movimento, permaneci onde estava achando que ela odiaria que eu, depois do meu afastamento, me aproximasse naquela hora, achava que eu pareceria falsa e que eu deveria ficar no meu novo lugar, mas parece que ela esperava que eu estivesse lá; depois de algum tempo fui capaz de entender que não se afasta de uma amizade importante para sempre e que na maioria das vezes vale a pena voltar. O que mais me marcou nessa época foi uma conversa pela internet - algo que depois passei a evitar o máximo em conflitos com amigas e amigos importantes - na qual ela disse que não adiantaria depois eu pedir para minha mãe ou os vizinhos irem falar com ela; garanti que não aconteceria, que naquele momento era "nunca mais". 
"Nunca mais", "com certeza" e "para sempre" são algumas das expressões que mais me incomodam hoje, talvez sejam as mais mentirosas e não sei por que as usaria. Nunca passou pela minha cabeça pedir à minha mãe ou à vizinha querida para me ajudar a reatar com ela, pelo contrário, minha mãe gosta muito dela e sempre peço à mãe que quando converse com ela separe as relações, a que elas mantiveram e a que eu tive um dia com ela. Nunca mandei recados, nunca pedi que levasse notícias específicas minhas e temo que essa minha vontade de escrever sobre tudo isso aqui pareça uma indireta para reatar a amizade, quando na verdade só surgiu mesmo uma vontade de escrever sobre isso depois de olhar para trás com muita calma, de repente entender o que aconteceu e refletir sore o que ficou. Vontade de reatar amizade eu tenho há algum tempo, fiz uma tentativa há uns cinco anos, mas ela negou, desconversou, aceitou... o que temos hoje é um cumprimento cordial e uma amizade em uma rede social. Não tenho vontade de que a gente volte a andar para cima e para baixo juntas, de ter a amizade que a gente tinha, há tantas irmãs que torcem uma pela outra e só saem juntas para colocar o papo em dia e tomar uma cerveja ou um café. Descobri isso com algumas amigas muito queridas que conheço há muito tempo, somos de círculos diferentes e não temos gostos em comum, não conseguimos fazer programas culturais juntas mas estamos sempre torcendo uma pela outra, compartilhamos coisas boas que nos acontecem e nos juntamos para comer, beber e conversar de tempos em tempos. É mais ou menos isso que eu gostaria de ter tido a oportunidade de propor a ela, de saber como ela anda, de apresentá-la a minha nova "família", de ter algum contato regular. Há quem diga que "não chegou a hora" mas que hora? Não acredito em destino, acredito no que vejo, nas escolhas que fazemos e nas suas consequências, não haverá "a hora" mas pode ser que haja ainda "uma hora", ou não.
Sigo olhando vez ou outra as notícias que a rede social me trazem dela, vida de rede social não é vida de verdade, mas neste caso é o que vale. Eu poderia terminar isso mandando algum recado a ela, fazendo algum pedido em público, expressando algum sentimento mas dessa vez, pela primeira vez, não se trata de uma indireta, nem de um meio de consertar o que fiz, nem de dar uma garantia de que sou outra e assim serei para sempre, não é mais uma carta, um e-mail, nem uma mensagem para ela, não sou eu me escondendo atrás de uma folha de papel ou de uma tela. São só as peças de um quebra-cabeça que comecei a montar quando criança e que hoje, perto dos 30, consigo encaixá-las com muito mais facilidade. Mas ainda assim, não sei como terminar a figura, assim como não sei onde encaixar o ponto final desta postagem.  

quarta-feira, 26 de março de 2014

anexo ao que chamei "Siri Hustvedt, eu e as nossas 'falhas de caráter' "

Coisa mais estranha é querer acrescentar algo a um post em outro post ... pensei tanto nisso, comentei que o faria e comentei que não o faria mas cá estou eu o fazendo:

Daquela lista...
Não consegui aprender aprender a nadar porque não conceber a possibilidade de ficar na posição horizontal na água e não afundar... sempre afundo, e se alguém me segura deitada na água sinto pânico. Nos primeiros dias de treino na academia de ginástica, atividade física que os médicos me recomendaram para eu gastar energia, aliviar ansiedade e tensão, eu sentia vontade de chorar, e às vezes chorava, levantando os pesos e esticando o corpo nas aulas de alongamento; não chorava de dor, mas pela sensação de estar tirando de mim algo muito pesado. Não consigo usar lápis de olho, fazer aquele risco preto nas pálpebras ou embaixo do olho (acho que é assim que fazem não), consigo menos ainda usar o tal do "curvex" que olho e sinto como se fosse uma tesoura ameaçando os meus olhos.

Essa lista com certeza não termina por aqui, nem daqui a sessenta anos.

quinze de março de dois mil e quatorze

Gosto de ler certos livros em ambientes diferentes. Tenho um livro de ônibus, um livro que não suscite as minhas dores da A.T.M., um livro leve de carregar e também leve de ler, pois as pessoas falam muito nos ônibus e no metrô. Falam com colegas de trabalho sobre clientes, falam por poucos centavos com alguém que se encontra por aí, em qualquer parte, pendurado em mais um, ou em um dos seus telefones celular. Meu último livro de ônibus foi O escolhido foi você da querida Miranda July, presente que ganhei de uma amiga mais querida ainda, tão criativa e talentosa quanto Miranda. O nome original do livro é It chooses you; se "O escolhido foi você" soa tão interessante,"It chooses you" é mais instigante ainda para mim, coisas que não temos em português, algo que nos escolha... It. Nessa tarde encontrei a amiga que me presenteou com esse livro. Sentar num café com alguém de quem você gosta tanto e compartilhar os seus sentimentos em relação a um livro é uma das coisas mais gostosas do mundo, assim como descobrir que choramos com as mesmas páginas e reforçar o nosso laço pelo mundo que algum livro nos propõe, ou encontrar esse nosso laço nele...
Na volta para casa involuntariamente me aproximo demais de uma moça com um livro na mão, meu lenço roça no livro dela quase tornando-se um obstáculo entre os seus olhos e as letras impressas no livro. Puxo o lenço e revelo o nome do autor no topo da página: Eduardo Galeano. Essa é uma das raras vezes em que encontro alguém no metrô lendo um livro que eu leria. Penso em colocar o livro que tenho do Eduardo Galeano na minha pilha de "próximos livros a serem lidos". A moça lê em espanhol; com a dança das cadeiras do metrô, descubro que ela lê As veias abertas da América Latina, o livro que tenho e que penso em colocar na lista dos próximos. Me dá vontade de perguntar a ela o que acha do livro, quem sabe com a resposta dela esse livro consegue o melhor lugar na minha fila de livros a serem lidos. Minha edição é de bolso, leve, será que é leve de ser assimilada e meio aos ruídos de tantos anseios pessoais no transporte público? Desisto de pensar na possibilidade de me comunicar com a moça e penso na possibilidade de prolongar o sorriso que esbocei ao cara bonito sentado ao meu lado, em quem uma das partes da minha saia longa - não a azul turquesa, nem a vinho, mas a azul escura comprada no mesmo bazar - enroscou. Por um momento a minha saia com pequenos defeitos de fabricação me vinculou ao moço e à senhora sentada perto dele, foi um vínculo flexível, elástico, de vai e volta, que se rompeu quando recolhi a saia e me desculpei aos dois com um sorriso. O moço é absorvido pelo celular e só se move para me dar passagem e sorrir como um retorno ao meu sorriso de agradecimento pelo grande espaço cedido a mim e a uma das minhas três saias longas comprada no bazar de roupas com pequenos defeitos de uma fábrica do bairro onde moro, meu sorriso pode valer também como um agradecimento à sua aparência que involuntariamente me agrada de alguma maneira. Desço na estação onde pego o ônibus para casa, olho pela janela e ele olha para onde ele quer, não para mim. Aperto o passo com aquela sensação de quem acredita que apertar o passo significa chegar antes de o ônibus partir do terminal, como se eu soubesse a hora em que ele parte, como se eu pudesse vê-lo, como se ele saísse antes de eu chegar no ponto só por eu estar andando devagar. Tento desviar de alguém que anda a pequenos passos na minha frente. Lembro de não checar o meu celular naquele momento para não andar daquele jeito, mas quem está ali no meio do caminho que me leva até o meu ônibus é a moça que lê o livro do Eduardo Galeano, que não larga o livro nem enquanto caminha - realmente deve ser um livro interessante! Chego no terminal antes do ônibus, pensando no quanto é possível encher-se de coisas boas em uma sexta-feira de folga. Chego em casa, coloco o livro na pilha de "próximos".

terça-feira, 25 de março de 2014

Say what you mean. Mean what you say!

Desde pequena me fascina a ideia do que é uma lista telefônica ou uma lista de endereços, a possibilidade de buscar algo mais de alguém, o caminho ou o código numérico que leva até o lugar onde a pessoa está fixada ou até mesmo à sua voz... mesmo que se faça esse percurso por nada, só para saber. Sou curiosa mas não invasiva, tenho o endereço mas não vou à casa, tenho o telefone mas não converso, mas hoje pode-se brincar mais com essas peças e saber muito mais, revelando-se muito mesmo com essas tais redes ditas sociais. Lá fora há muitos olhares e convites para se perder em outros mundos, todo tipo de mundo e, dependendo do mundo, compensa esquecer o caminho temporariamente. Mas há muito tempo eu ando com um mapa e não tenho mais coragem para me perder... os caminhos mágicos eram tão pequenos perto dos rochedos que às vezes me impediam de mudar de rumo... Eis que um dia tentei um caminho novo com o mapa dobrado e guardado no bolso.
Um cara trabalhava em um evento para o qual fui convidada por um amigo especial que nós, o tal cara e eu, temos em comum; o cara também era convidado, mas como estava lá também trabalhando, então estava em evidência. Devido ao meu passado espinhoso naquele círculo onde nos encontrávamos, decidi conter o meu olhar que começava a se perder nos olhos, cabelos e magreza dele. Seu nome era Ordep Omrac Arierep, mas era conhecido como Ordep Bagarre, contudo chamemos a encrenca aqui somente de O.
Algum tempo depois, desolada pelos desencontros e pelos beijos que partem em aviões, e desorientada pelo vazio e pelo frio das férias de Julho, me joguei nos desencontros da internet que nos levam aos lugares que buscamos e... encontrei O... e ele quis me encontrar, iniciamos  o que se chama "amizade" na rede social. Minha essência ansiosa me determinou (momento de má-fé existencialista) a descobrir o máximo de O. antes que ele abrisse a boca para me dizer "oi", ou encostasse os dedos em um teclado para digitar "oi". Dentre algumas coisas que se encontra em redes sociais, descobri que possivelmente ele tivera, ou que ainda tinha, um relacionamento duradouro e sério com uma moça que não estava na rede. As fotos dos dois, posando de casalzinho, Um ao lado da Outra, estavam curiosamente na página de quem eu compreendera que seria a irmã dela, e não na página dele. Havia também uma cachorra que se confundia com a moça, uma cachorra em uma rede social, uma cachorra plantada em fotos esperando por uma mãe que nunca termina o trabalho, que nunca volta para casa, uma cachorra desempregada que espera por quem lhe afaga os pelos cacheados, uma cachorra que lambe o pai a cada gracinha que ele faz, uma cachorra amada, desejada com quem ele gostaria de passar mais tempo... curiosamente a cachorra tinha o meu apelido. 
A relação com O. por meio de teclados e telas preenche algumas das minhas tardes e um dia - uma manhã, uma tarde e uma noite - enquanto eu sentia que deveria estar mesmo era trabalhando no texto da qualificação da minha dissertação de mestrado... mas eu já começava a sentir o cheiro das amêndoas amargas e a ficar tão  atordoada  a ponto de esquecer que a cachorra era filha de uma mulher ou era a própria cachorra a mulher de O., o verdadeiro cachorro. Não acredito no quanto sou tola para sentir cheiro de amêndoas amargas aos 27 que ainda não eram 28, talvez fosse porque ele se parecia com o melhor beijo da minha vida, não sei se eram os cabelos cacheados e grisalhos, o amor por algumas canções ou a chegada de ambos neste mundo na década de 1970... eram esses tipos que me faziam me perder no cheiro das amêndoas amargas.  Era como se nos conhecêssemos há uma década, fazíamos listinhas de coisas gostosas, no maior estilo daquela peça que tanto me fez chorar... Trilhas sonoras de amor perdidas.
O encontro real se aproxima e em um momento de lucidez, quando estou menos enjoada do cheiro das amêndoas, pergunto sobre a cachorra e recebo como resposta "Estou em um momento de separação". Ora, uma separação tem vários momentos até passar de "separando" a "separado", em qual deles eles estariam? E onde eu estaria nisso? Começava a me lembrar de um encontro que tive com um cara que dormia no sofá da ex porque ele não tinha para onde ir com os seus móveis e porque ela precisava dos móveis dele no apartamento dela... lembro que passei mal em todos os encontros e preocupei o cara excessivamente a ponto de ele me chamar pelo diminutivo do meu apelido e assim fazer com que eu, me sentindo do tamanho de uma ervilha, realmente me cansasse de passar mal e de ser chamada de "-inha". 
As amêndoas são mais fortes e eu dou continuidade no processo do encontro, vestindo a má-fé existencialista de novo, penso que não sei em que momento está a separação e que por falta de informação posso continuar, mesmo agora lembrando do buraco em que fiquei por causa de um relacionamento com o cara que tinha ex-esposa, dois filhos, namorada e um comércio, by the way, amigo de O. que naquele momento eu fingia não conhecer, para não misturar tanto - ou mais - as coisas, you know
O encontro acontece no dia mais frio do ano, talvez para que eu já me acostumasse com o banho de água fria que viria depois. O. é extremamente atraente e ao pensar nisso lembro que o meu grande defeito é esconder de mim mesma alguns defeitos das pessoas que acho muito atraentes, que futilidade prender-me tanto às aparências! O papo é agradável, seu olhar em cima de mim e seu olhar em direção às coisas são interessantes, a companhia é boa. Contudo eu, com todos os meus problemas de bicho do mato, me encontro quase em pânico e mais do que isso, com uns sentimentos indefiníveis, indecifráveis e indizíveis porque o encontro se dava no dia de um dos mais esperados e melhores shows que já vi na vida. Era emoção de sobra que não vou contar aqui pois é mais bonita e mais significante do que isso tudo. 
Ao final dos ruídos e da presença que encheram muitos olhos de sorrisos naquele teatro, O. me ofereceu uma carona até o metrô, me lembrei que talvez eu tivesse lido algo que ele escreveu na rede social sobre não ter carro, mas aceitei. Quando nos aproximamos no carro, notei um adesivo de um símbolo cristão, adesivo de carros de católicos praticantes, e O. não parecia um católico praticante. Entro no carro tremendo de frio e de medo da vontade de beijá-lo e noto um terço no espelho e bichinhos de pelúcia, um em cada canto do carro, um ursinho e uma pequena girafa, além do cheiro fofo que só lembro de ter sentido dentro do carro de um colega gay. Estudo questões ligadas à construção do masculino e do feminino e penso que não há problema algum em homens gostarem de ursinhos e girafas de pelúcia, mas ao mesmo tempo penso que essas construções são tão fortes que é muito difícil encontrar alguém que as tenha rompido, enquanto é muito mais fácil encontrar um homem que se coloca em um relacionamento sério e sai por aí com o carro da parceira conhecendo outras mulheres sem mencionar o contrato do relacionamento sério, fiquei com essa segunda opção. Minha vontade era de perguntar: "De quem é este carro?", mas não fazia sentido cobrar algo de alguém que não havia me prometido nada. Por outro lado, também não faria sentido se ele estivesse fazendo o que pensei, se não tivesse me contado que tinha uma namorada ou uma esposa. Mas era só "e se". "E se", "e se", "e se", what if? Penso em perguntar sobre os bichos de pelúcia, ele entra no carro, olho para o terço e pergunto "você é católico?"! Ele se enrola, fala em "valores de família", diz que sim, diz que não etc e eu já não estou prestando atenção na resposta mas em como ele se enrola nela. Seguimos para o metrô e nos beijamos a cada semáforo vermelho. Droga! Ele beijava igual ao dito "melhor beijo da minha vida"!
Volto pra casa com um sorriso de amêndoas de orelha a orelha, achando mil coisas da vida, pensando em mil coisas sobre O.
No dia seguinte a conversa esfria. Penso que é coisa da minha cabeça, respiro fundo, analiso... mas não, não é... a conversa intensa dispersa, o laço se afrouxa... mas ele correspondeu o beijo, o que EU fiz de errado? Dois dias depois toco no assunto da conversa fria e sugiro um encontro daqui a outros dois dias, ele se ofende sentindo-se "cobrado" e eu me desculpo... eu me desculpo! Passam os dias, ele retoma a conversa fria que esquenta até demais. Ele continua sem tempo para o segundo encontro - diz que é o trabalho, ao meu ver ele não se doa muito ao trabalho - mas me convida para um evento seu. Pergunto novamente sobre o momento da separação e em uma resposta mais enrolada do que a do terço no carro ele sugere que sejamos amigos e me acusa de ser "apressada e ansiosa". Hoje é claro perceber que a conversa fria e essas acusações foram para me afastar de descobrir que ele era casado, hoje é fácil perceber que tudo começou depois que em uma pergunta deixei claro que sabia de quem era o carro. Mas coincidentemente a ansiedade e consequentemente a pressa são os meus pontos fracos, então tocar nesse assunto me destrói.... passo uma noite em claro chorando e me perguntando sobre o que fiz de errado dessa vez. Escrevo pra O. e ele me responde do modo mais tranquilo, amigo e paciente... afinal, o que aconteceria se eu ficasse com raiva dele?
O. coloca  a amizade em prática, uma vez por semana, por um mês e agora sempre me acusa por eu ter que voltar para a minha dissertação e não ter mais tempo para acompanhá-lo em exposições e apresentações de dança (torna-se o meu amigo mais chato!). Seus olhos e suas mãos buscam as batatas das minhas pernas agora, até que eu me acostumo à situação, me sinto confortável, tento beijá-lo e ele... fecha a boca! Ele demonstra desejo e fecha a boca, fecha a porta do armário onde ele esconde algo, uma mulher, uma cachorra, a cachorrada que ele faz com a mulher e eu, a cachorrada que ele disfarça posando com a cachorra no colo e os bichinhos de pelúcia no carro. Pra mim chega! Começo a me afastar nesse dia, com a sensação de ter vivido o relacionamento mais absurdo e mais idiota em menos de dois meses... ele ainda manda mensagens, algumas de voz bem bregas e engraçadas. Stalker que sou, não sossego e procuro por mais pistas, surge uma foto da tal moça com a cabeça da cachorra ao lado de O. em uma festa de Ano Novo, e mando feliz ano novo para ele, para a cachorra e para a moça (a chamo pelo nome que ele nunca me contou) e ele me manda um sorriso. Também analiso melhor a cachorra esperando pela moça no restaurante, vejo o nome do restaurante na foto, pesquiso e descubro que o local fica no mesmo bairro em que O. mora. Os movimentos virtuais da suposta irmã da moça-mãe da cachorra-esposa de O.-trabalhadora do restaurante... os movimentos da irmã de todas elas indicam que estou na pista certa. Retorno ao falido blog de O., ao último post, que é sobre alguém a quem ele dá qualquer nome, alguém com quem ele tem problemas de dinheiro, alguém que reclama de dinheiro, que veste a sua camiseta, alguma, algum feminino com quem ele vive e o atormenta. A cachorra reclama que ela trabalha demais, O. reclama no blog (e reclamara comigo) sobre a necessidade que as pessoas tem por aí de dinheiro, seu plano é viver com pouco... mas o que percebo é que ele vive com pouco dele e muito dos outros, sua vida custa caro. 
Encontro o telefone do restaurante, ligo e peço para falar com alguém que tem o nome nas legendas das fotos nas redes sociais mas que não sei se existe porque ela não existe nas redes sociais:
Alô. Gostaria de falar com a...
Ela vem ao telefone, fala comigo e eu inicio: 
Oi, sou amiga do seu marido, ele me recomendou o restaurante em que você trabalha. Tudo bem? Você é a, ... , esposa do Ordep, não?
Ela confirma e eu desligo, só posso ficar feliz por ainda ter um bom faro que perpassa o odor das amêndoas amargas.


Começou em Julho de 2013. Há algo no relato acima que nunca aconteceu. 

domingo, 23 de março de 2014

A palavra "furacão"

A palavra "furacão" de acordo com a dupla Air;
Parte da trilha sonora do filme Virgens Suicidas;
Ou: trilha sonora para cair no chão de uma loja de discos

para clicar e escutar: The Word "Hurricane" - Air

The word 'Hurricane' is the name given to nature's strongest storm. A 
hurricane occurs when high pressure and low pressure masses of air come in contact with one another. 

There is often a significant difference in temperature between the two masses. One mass is warm, while the other is cold. The warmer air rises, and the cooler air falls. Likewise, the low pressure area slides down the sides of the high pressure area. 

They swirl in and around one another, creating the beginnings of the storm.


sábado, 8 de março de 2014

Siri Hustvedt, eu e as nossas "falhas de caráter"

"[...] havia uma coisa chamada sinestesia reflexiva, quando alguém sente o toque ou mesmo a dor alheia só de olhar para a outra pessoa. De todo modo, essa forma de sinestesia só foi descrita e definida em 2005. Quando eu era criança, minha mãe costumava me dizer que eu era 'sensível demais para este mundo'. Ela não falava por mal, mas por muitos anos considerei minha hipersensibilidade uma falha de caráter. Desde que me lembro, sinto os toques, batidas e choques bem como o estado de espírito de outras pessoas, quase como se acontecessem comigo. Consigo distinguir entre um toque real e o que sinto quando vejo alguém ser tocado, no entanto a sensação existe, mesmo assim. Sinto como se fosse a minha a dor de alguém que torce o tornozelo. Observar a mãe que acaricia a filha me dá o prazer físico que eu sentiria ao fazer o mesmo gesto. Se alguém se machuca num filme, fecho os olhos ou saio da sala. Quando menina, passei metade de um episódio de Lassie no banheiro. Filmes violentos ou de terror são intoleráveis, pois sinto a tortura das vítimas. Olhar, ou só pensar num cubo de gelo me dá arrepios. Minha empatia é extrema e, para ser franca, por vezes sinto com exagero e preciso me proteger da superexposição a estímulos que me tornariam um pilar de carne dolorida. Tudo isso, ao que se sabe, caracteriza quem sofre de sinestesia reflexiva. 
Também reajo com intensidade a cores e luzes. Por exemplo, durante uma viagem à Islândia eu viajava num ônibus, olhando pela janela a paisagem desprovida de árvores, quando passamos por um lago de cor inusitada. Sua água era azul-esverdeada, clara, glacial. A cor me agitou como se fosse um choque. Percorreu meu corpo inteiro, e me vi resistindo a ela, fechando os olhos, agitando as mãos num esforço para expelir aquele matiz insuportável do corpo. [...] Diversos tipos de luz geram emoções distintas em mim: o sol fraco da tarde entrando através da janela, o brilho irritante das luzes da rua, a crueldade das lâmpadas fluorescentes. [...]" (Siri Hustvedt, A mulher trêmula ou Uma história dos meus nervos, p.112-113)

Foi por causa do trecho acima, passagem do livro de Siri Hustvedt em que ela nos conta sobre a sua busca pela compreensão e pela causa de seus tremores ao falar em público a partir de um determinado momento da sua vida, que eu decidi escrever sobre a minha sensibilidade. Assim como a mãe de Hustvedt, a minha mãe também me considerava sensível demais para este mundo quando eu era criança, ela dizia algo quase com as mesmas palavras usadas pela mãe da autora, e assim como Hustvedt, também sempre considerei o meu excesso de sensibilidade uma falha de caráter; aliás, quando li o trecho que cito acima, "falha de caráter" soou como uma expressão mágica para mim e traduziu o que eu sempre senti, antes sem saber nomear, em relação à minha postura no mundo e em relação às pessoas exageradamente determinada por uma gritaria de sentimentos quase inexplicáveis. Contudo sempre pensei que por ser filha única e ter tido alguns problemas de saúde na infância e ter tido mãe e pai superprotetores, esses sentimentos poderiam ser resultados da situação na qual se deu a minha formação, o que definem por aí como "frescuras". Nunca pensei em fazer uma lista do que sinto em exagero, mas sinto cada vez mais vontade de cruzar as minhas sensações com as de Hustvedt num texto toda vez que releio o trecho acima. Não sei por onde começar, nem como classificar os itens dessa lista, então posso começar dizendo que quando exposta a determinadas situações sinto náuseas terríveis intercaladas de falta de ar, o que considero sintoma de uma ansiedade absurda. Talvez eu seja apenas uma pessoa ansiosa e insegura que acumula muitas coisas e faz algum drama, drama queen, "fresca"... Mas há outras coisas: Choro em quase todos, TODOS os episódios de Grey's anatomy, todos os pelos dos meus braços arrepiam em shows de bandas cujas letras dão voz ao que eu tenho entalado no peito, houve uma época em que eu sentia dores de cabeça com frequência no final da tarde, passar por uma loja de lustres à noite é uma agressão, a luz baixa de bar me deixa um pouco impaciente. Só de olhar para uma placa de isopor ou unhas grandes perto de uma lousa tenho vontade de me contorcer, aliás unhas grandes me desesperam, e se são as minhas unhas que estão grandes, sinto os dedos sujos e pesados o tempo todo. Ver duas pessoas se beijando às vezes me traz o toque dos lábios de alguns beijos que experienciei e que às vezes me dão saudade. Quando levo uma pancada leve, como quando a catraca do ônibus ou do metrô bate no quadril, a dor parece durar muito mais do que o segundo da batida. Tomar soro, especialmente com remédios para o estômago, me dá a sensação de que tudo dentro do meu corpo vai estourar e a vontade que sinto é de sair correndo. Tem dias em que a buzina do moço que vende pão na bicicleta ou o encontro brusco de um garfo e um copo, ou de um prato e uma pia, ultrapassam os meus ouvidos e causam dores na minha cabeça, ou basta que eu tome um susto para a dor começar. Conversar com alguém segurando uma faca, ou qualquer objeto pontiagudo, na minha direção me dá a impressão de que a faca ou o objeto irão de encontro aos meus olhos. Os fogos do Ano Novo me causavam desespero quando eu era criança, hoje só me angustiam, assim como os relâmpagos. Fico meio zonza e sinto como se eu não estivesse prestando atenção em mais nada em uma conversa com mais de três pessoas. Ficar acordada de madrugada me dá enjoo, um dos motivos para evitar baladas, onde eu adorava ir para dançar; nos últimos anos me sinto triste dançando e cheguei a chorar e sentir falta de ar em uma pista de dança. Outro dia um moço estava passando mal no metrô e eu não sabia como oferecer a minha garrafa de água para ele porque parecia que eu começava a assimilar o mal estar dele, o que fez eu me lembrar de quando uma amiga da faculdade chegou na sala de aula devastada e com o comportamento bastante alterado e eu me sentia não só preocupada, mas desesperada com a situação. Naquela noite não consegui dormir. A falta de ação pode ser consequência de eu não ter sido criada para agir e ajudar, mas só para ser protegida. Os enjoos, como eu apontei, devem ser sintomas de ansiedade. As dores de cabeça e a sensibilidade nos ouvidos podem estar relacionados à minha disfunção da articulação temporomandibular, problema que eu gostaria de investigar com o afinco que Hustvedt pesquisou a sua doença, mas não consigo tempo para me debruçar em tantos livros de diversas áreas e por enquanto não penso que sou tão inteligente quanto ela para elaborar um trabalho de tanto fôlego para entender a própria doença. Talvez eu não tenha sintomas de sinestesia reflexiva, talvez só tenha sido um encanto e um sentimento intenso de conforto e acolhimento ao me encontrar nas páginas 112 e 113 do livro de Hustvedt.