domingo, 9 de novembro de 2014

Contam sobre a Sylvia Plath para as garotas que escrevem...

impressões sobre a peça Ilhada em mim - Sylvia Plath

Há dez anos, nesta mesma época do ano - há pouco mais de um mês do episódio do milho e das duas semanas vivendo de frutas e água de côco, assintindo desenhos e lendo Memórias de uma moça bem comportada, da Simone de Beauvoir - eu me sentia sufocada. Nesse sufoco, na passagem de um mundo para outro, com a janela aberta, ouvindo que uma vizinha tinha passado de um mundo para o outro, em outro sentido, eu lia todas as Sylvias Plath da biblioteca do bairro e encontrava conforto, abraços entre a capa e a contracapa dos livros, sabendo que alguém já tivera a sensação de estar sufocando, se afogando e afundando. Na mesma época eu comprei um cd da Kristin Hersh e encontrava o mesmo conforto na letra de The letter, que parecia ter saído da poesia de Sylvia Plath, neste trecho: Don't forget I'm living inside the space where walls and floor meet. There's a box inside my chest. An animal stuffed with my frustrations. Can you hear me? (Traduzindo: "Não esqueça que eu estou vivendo em um espaço onde paredes e chão se encontram. Há uma caixa dentro do meu estômago. Um animal recheado com as minhas frustrações. Você pode me ouvir?"
Embora eu associasse uma música da Kristin Hersh à Plath, foi outra música que me levou à autora. Bloody Ice Cream da banda riot grrrl Bikini Kill, dizia: The Sylvia Plath story is told to girls who write. They want us to think that to be a girl poet means you have to die. Who is it that told me that girls who write must suicide? I've another good one for you, we are turning cursive letters into knives (Traduzindo: "A história da Sylvia Plath é contada a garotas que escrevem. Querem que nós pensemos que ser uma poetisa significa que você tem que morrer. Quem é esse que me contou que garotas que escrevem devem se suicidar? Eu tenho uma outra boa para você, estamos transformando letras cursivas em facas."). Mencionando as tentativas de suicídio e então o suicídio de Sylvia Plath, a letra, ao meu ver, termina com uma boa nova positiva às "herdeiras" de Plath, às garotas que escrevem: a transformação da letra cursiva em faca, não para se matar, mas para atacar, para se defender daqueles que querem destinar todas as garotas que escrevem à morte. 
Nunca me aprofundei na obra de Plath, mas li tudo dela a que tive acesso, com exceção dos diários, que comecei a ler há alguns anos, parei e que considero reler desde o começo, agora indo até o fim, em um outro momento. Nos últimos dez anos carrego a autora no coração e por isso saber de uma peça sobre ela nos últimos meses me deixou bem contente. No último dia de apresentação de Ilhada em mim - Sylvia Plath, quando caiu uma chuva forte e muitíssimo desejada em São Paulo, depois de muitos dias sem chover, fui ao teatro do Sesc Pinheiros ver a peça, que começa com pingos do teto ao chão que está forrado de água, o que fazia com que os desavisados pudessem pensar que a chuva de fora estivesse interferindo lá dentro, mas na verdade era apenas o afogamento como metáfora para o sufoco de Plath, que se matou colocando a cabeça dentro do forno após abrir o gás de cozinha, dentro da cozinha fechada com todas as frestas vedadas. Não sou boa em resenhas e nada entendo de teatro, mas em poucas palavras posso contar que é uma peça difícil para quem a encena: há poucos diálogos, o áudio com verdadeiras gravações de Plath e do marido, as projeções das legendas do áudio e das suas poesias, o cenário, os movimentos e as expressões nos rostos do ator e da atriz que interpretam Sylvia e Ted, fazem a peça, contam, cortam, quebram, vão e voltam na história. O clima da peça é denso, tenso e pesado, mas lindo. É delicado e sufocante (talvez um pouco mais sufocante para quem estava com refluxo devido a um caos emocional no estômago, eu). A platéia aplaudiu em pé e ao levantar e eu desabei a chorar o sufoco que segurei durante toda a apresentação. 
Anos depois ainda há garotas que escrevem, sufocam, se afogam, mas que também reagem, que voltam empunhando letras cursivas como facas. Por isso fico com o final do poema de Plath Lady Lazarus
Out of the ash 
I rise with my red hair 
And I eat men like air

Como (des)construir uma mulher feia


 impressões sobre o filme Violette

Simone de Beauvoir se refere à Violette Leduc, nas cartas que escreve a Nelson Algren, como “a mulher feia”. Foi com alguma chateação que li e reli essas palavras e as reclamações de Beauvoir sobre as vezes em que jantava com Leduc. Aguentar a mulher feia parecia um fardo. Daí eu me lembrava de algumas parentes e vizinhas, que infelizmente estiveram muito presentes na minha formação – e que ainda insistem em invadir o meu espaço e da minha família –, que se dedicam a uma vida de aparências, que caluniam os outros, que criam intrigas nas vidas alheias enquanto se escondem atrás de sorrisos, cumprimentos cordiais e discursos em nome do amor. O fato de Beauvoir ter amizade com Leduc e rotulá-la como “a mulher feia” me remetia mais a esse tipo de pessoa – as parentes e as vizinhas – do que à mulher que desmantelou o Eterno feminino, tão nocivo às mulheres, e que chamava a atenção das mulheres para que elas se unissem. Mas nessas cartas já era também uma surpresa o encanto no qual ela se enredava em sua paixão por Algren.
Nunca fui atrás de outros escritos sobre Violette Leduc, nem dos escritos dela; em um livro sobre Beauvoir encontrei uma foto dela e não pude deixar de pensar em sua aparência, achei a mulher... feia; mas feia para mim, não universalmente feia. Mas eis que surge um filme sobre Violette Leduc: Violette (Violette, direção: Martin Provost, França, 2013), em que a saga de Leduc para tornar-se escritora e a amizade com Beauvoir são narradas com a importância que Leduc merece, com ênfase em sua escrita poética e com uma imagem forte e essencial da presença de Beauvoir na vida da escritora.
O filme mostra Violette já adulta, desde quando ela começa a arriscar as suas primeiras palavras pensando em escrever um livro - na época em que ela ainda roubava comida e negociava no mercado clandestino para sobreviver aos estragos da guerra – até o reconhecimento de sua obra que a permite caminhar com as suas próprias pernas e ter a própria vida em suas mãos de escritora.
Não poderia confrontar o que assisti com a vida de Leduc, já que esse filme é minha única referência a respeito dela. Nele, o que vi foi uma Violette Leduc inteligente, que mesmo sem ter estudado ou trabalhado, escrevia muito bem, mas que era ávida por algo que preenchesse ora o seu coração, ora o seu corpo. Ela buscava uma mulher, um homem, outra mulher, outro homem, alguém que a desejasse carnalmente mas se sentia, na maior parte do tempo, uma mulher feia que ninguém desejava. Ao mesmo tempo, ela queria atenção, talvez a atenção que não tivera da mãe, a quem ela acusa de nunca ter segurado a sua mão, mas somente a manga da sua blusa, para atravessar a rua quando criança. Leduc lamenta e se revolta o tempo todo pelo tempo que as coisas levam para acontecer para ela, ou por tudo o que deu errado em sua vida, e ela tem a si mesma como causa de todos esses estragos; quando ela se irrita com a mãe e esta lhe pergunta o que fizera a ela, Leduc responde: “Você me fez!”
Leduc parece buscar alguém mas desconfia de todos ao seu redor, outras vezes se apaixona e logo se decepciona por não ser correspondida da forma que espera. Ela chora em desespero como se todos fossem culpados pelos seus atos, e ela, culpada pelo que é, pelo que se tornou. Mas é nas relações intersubjetivas, mesmo que essas sejam tão espinhosas, que Leduc consegue alcançar alguma paz e satisfação em sua vida. Em Paris, na casa de um amigo do amigo que a magoara, ela encontra jogado o livro A Convidada de Simone de Beauvoir, ela leva o livro para casa, lê e decide entregar os seus escritos à Beauvoir, que os aceita, lê e passa a ajudar Leduc a publicá-los e a escrever mais. Mas Leduc se apaixona por Beauvoir, a cerca, cobra atenção, coleciona as suas fotos e a tem como objeto de desejo; atentando à essa situação, ficou bem mais fácil entender que Beauvoir carregava um fardo, já que Leduc não a deixava em paz e era um tanto insistente. Contudo, Beauvoir não a agrada, não a incentiva ao choro desenfreado, não a tem como coitada, não passa a mão em sua cabeça, mas sempre a impulsiona a escrever mais, e lhe mostra a importância desse trabalho. Beauvoir não deixa a amiga desistir, assinala a importância da busca por autonomia, e também a importância de contar sobre o aborto que fizera, sobre a sua sexualidade e sobre as suas experiências homoeróticas para ajudar outras mulheres. Beauvoir envia a Leduc, se passando pela Editora Gallimard, um pagamento mensal para que ela se sustente; além disso, Beauvoir também a acompanha no seu processo de recuperação em uma clínica quando ela adoece, levando as cartas e o reconhecimento da crítica nos jornais, que finalmente começam a surgir para o trabalho de Leduc. Assim, compreendo o quanto Beauvoir fez por Leduc, e se ela a chamava “a mulher feia” quando falava dela aos outros, ela de alguma forma preservava a sua identidade; para Beauvoir Violette Leduc era uma escritora, a tornar-se conhecida, com um trabalho importante por fazer pelas mulheres, e “a mulher feia” era a sua amiga carente que a idolatrava e cobrava demasiada atenção, que fugia desse trabalho e que se escondia em um ser-mulher-feia.
É preciso o reconhecimento de seus projetos, que lhe trazem sustento e a aprovação pelo olhar do outro, e quando ela se debruça sobre o trabalho e recebe esse reconhecimento, vemos uma mulher cuja aparência lhe pesa menos, que respeita a liberdade de Beauvoir na relação que elas mantém, que abre espaço para que as pessoas se aproximem dela e até mesmo a desejem, e que não dá tanta importância quando alguém a abandona.
Leduc encontra um lugar no campo para viver, e é nesse lugar que ela está apaziguada, sem asfixia, sem ser a filha bastarda, sem estragos (Asfixia, A filha bastarda e Estragos são títulos de seus livros), escrevendo no final do filme, enquanto Beauvoir está na televisão falando do percurso de Leduc e da contribuição que ela fez às mulheres que, naquela altura (década de '60), já tinham a permissão para abrir conta em banco, sem o marido (exemplo mostrado no filme).
Vejo no final do filme uma lente feminista, que exalta toda e qualquer emancipação da mulher, por meio do trabalho, do coletivo, da amizade entre duas mulheres, da literatura a partir de confissões íntimas que falam com e por muitas outras mulheres. Sozinha, Leduc existia enquanto mulher feia e assim insistia em mostrar-se ao mundo. Beauvoir a força a deixar de lado a má-fé da feiúra e a assumir a própria existência para além do seu corpo, a fazer de si o que não seja “a mulher feia”. A feiúra de Leduc não está em absoluto no seu rosto, mas está nos maus tratos às mulheres solteiras que recusam o casamento, às mulheres lésbicas, às mulheres que abortam; a feiúra de Leduc é construída pela sociedade que a convence a assumi-la, e é escutando Beauvoir que ela vira a mesa e desconstrói a sua feiúra ao expor a sua singularidade: a sua sexualidade, e a sua vontade de não casar e de não ser mãe, como escolhas de qualquer mulher, de muitas mulheres, que se tornam feias aos olhos da moral dominante. É nesse momento que o penteado, as roupas e a maquiagem de Leduc mudam; ao meu ver, ficam mais harmoniosos e mais bonitos, mas longe de tentar impor à mulher um modelo de aparência para que ela fique bonita, prefiro entender que ver uma Leduc bonita na tela corresponde a um tornar-se bonita – independente de como se dá esse tornar-se – que representa um tornar-se o que quiser, deixando assim de existir enquanto mulher feia.